A dor como veículo de consciência
Muitas tradições orientais ensinam que a dor tem um papel importante e fundamental em nossas vidas. Diferente do que costumamos achar, a dor não é simplesmente algo ruim e que deve ser evitado a qualquer custo.
Como a filosofia nos ensina, precisamos desenvolver o hábito de olhar tudo a nossa volta buscando uma percepção mais profunda das experiências que vivemos evitando ficar nas sensações e reações básicas, imediatas e instintivas.
Mas para isso, primeiro temos que estar conscientes que somos um complexo de camadas com diferentes formas de perceber tudo a nossa volta e também a nós mesmos. Essas camadas vão desde o nosso corpo físico e material, sendo o primeiro com o qual nos identificamos e o mais fácil de perceber as interações com a vida. Então, por exemplo, quando você era criança e encostou na chama de uma vela pela primeira vez, o calor do fogo começou a queimar o seu dedo, a reação do seu corpo físico foi a sensação da dor e a partir daí você criou o entendimento que deixar a mão sobre uma chama de vela não é bom, dói, faz mal, então você retira a mão de lá.
Perceba que temos o elemento da ignorância no princípio dessa experiência, afinal foi a primeira vez que você fez isso e por isso não sabia o que aconteceria, você não tinha memória de alguma experiência similar, temos também o elemento da ação de levar a mão até o fogo, ou seja, a escolha de fazer algo, temos o elemento da reação da ação, que no caso é do que queimar a pele, temos o elemento da dor e por fim temos o elemento mental que seria nosso raciocínio nos dizendo que essa ação não é positiva e por isso temos que agir rápido em outra direção e no caso seria tirar a mão do fogo.
Podemos ver aqui que a dor, por mais negativa que possa parecer é um elemento positivo, pois sem ela não acessaríamos nossa camada mental para criar a compreensão de que aquilo é nocivo para mim. Podemos então dizer que foi através da dor que eu criei a consciência de que o fogo queima, através da dor eu aprendi algo que vai me lembrar de não fazer aquilo de novo.
Mas nem todas as experiências que temos na vida são próprias e exclusivas dessa nossa camada material como nosso corpo físico. Nossa camada emocional está lidando com experiências o tempo todo, experiências que não são apenas boas e prazerosas mas também experiências que nos machucam, e essas experiências são tanto de ordem individual como também de relacionamento com outras pessoas.
Muitas vezes entramos em relações interpessoais que em algum momento nos causam dor, e por ser uma relação interpessoal a dor não necessariamente é física como o fogo que queima, mas uma dor em nossa camada emocional. E isso pode vir de uma relação entre familiares, uma relação afetiva, profissional, ou até de um grupo social a qual pertenço.
E o que é essa dor? Assim como no caso da mão do fogo, essa dor também é um aviso que tal experiência que você esteja experimentando, de alguma forma não está te fazendo bem, tem algo errado, algo que precisa mudar, algo que precise de algum ajuste, pois você percebe que falta harmonia nessa relação.
O problema é que muitas vezes temos uma reação automática a essa dor, e essa resposta vem do nosso corpo emocional também, onde, na verdade, deveríamos acessar nosso aspecto mental para nos posicionarmos diante dessa ameaça. No corpo emocional guiado pelo nosso ego estão armazenadas nossas experiências passadas de alegrias e tristezas, de medo, os traumas e crenças que incorporamos e que nos limitam, mas principalmente existe uma peneira ou balança muito rudimentar para tomada de decisões, que chamamos no Yoga de Raga e Dwesha, ou seja, os apegos, aquilo que eu gosto e aquilo que eu não gosto. Ou de forma muito direta e objetiva, é o famoso “dois pesos e duas medidas”. E esse é o grande vilão da história que te rouba a chance de crescimento.
Porque quando algo acontece que tem põe nessa situação de dor, de incômodo, de percepção que algo não está do seu agrado, a primeira reação da autopreservação é essa análise superficial do “isso ou gostou” ou “isso ou não gosto”. Ora, ninguém gosta da dor, ninguém gosta do sacrifício, ninguém gosta da percepção de estar errado e ter que fazer de outra forma, mas se você habitua a sua mente a ser tendenciosa e tomar as decisões apenas no que você gosta e o que você não gosta, se você habitua a sua mente a tomar as decisões sempre com base no seu emocional, sua mente para de trabalhar a discriminação, o questionamento e o discernimento. Suas respostas serão sempre automáticas sem qualquer reflexão sobre o assuntou ou situação que está diante de você.
Esse é o resultado de encarar a dor como algo apenas pessoal e com a ideia equivocada que a vida boa é aquela vida onde não existe nenhuma insatisfação.
Buda nos ensinou na sua primeira lição sobre as 4 Nobres Verdades, que a vida é de insatisfações sim. Esses momentos fazem parte da nossa vida, que devemos entender porque eles fazem parte. Não é para nos deixarmos mal, mas sim são dessa forma que podemos perceber que algo está errado e então devemos mudar a rota, mudar o pensamento, mudar as ações. Essa análise de perceber o que está sendo feito hoje e o que deve ser mudado é o ganho da consciência. É assim que crescemos como pessoas e melhoramos nossas relações conosco e com os demais.
Sabe quando você faz algo e percebe que não foi bom, doeu, ou aquela dor na consciência, aquela falta de sono que incomoda, essa é a função da dor para fazer a gente pensar a respeito e aprender com isso e não fazer mais.
De novo, esse é o ganho de consciência que a dor promove.
O precioso livro Bhagavad Gita também aborda o conceito de dor e sofrimento em várias passagens, oferecendo uma compreensão filosófica e mais profunda sobre como lidar com isso. O Gita explica que dor e sofrimento fazem parte do mundo material e são aspectos inevitáveis da vida humana. No capítulo 2, verso 14, Krishna diz a Arjuna:
“Ó filho de Kunti, a aparição não permanente da felicidades e da tristeza, e seu desaparecimento no devido tempo, são como a aparição e o desaparecimento das estações de inverno e verão. Eles surgem da percepção sensorial, e por isso deve-se aprender a tolerá-los sem se perturbar.”
Em resumo, o Bhagavad Gita ensina que dor e sofrimento são temporários e surgem de experiências sensoriais. Ao cultivar o desapego e buscar conhecimento espiritual, pode-se transcender a dor e alcançar um estado de equanimidade e paz interior.
Esse desapego que deve ser cultivado é eliminar cada vez mais nossa tendência de dois pesos e duas medidas nas nossas tomadas de decisões, pois muitas vezes o certo e o que deve ser feito é justamente o que não gostamos e não queremos fazer, mas para sermos equilibrados e harmoniosos mentalmente, a razão deve ser superior aos apegos e desejos sensoriais.
Então entenda a dor como uma oportunidade de perceber e aprender algo que não está claro para você, e que talvez uma mudança de comportamento seja a solução em vez de apenas ignorar a dor tentando sufocá-la com mais apegos e distrações materiais.
Edson Daniele
03/10/2024
Vídeo do texto: https://youtu.be/J8gE6BWIIQQ